
Futebol Interior: Descobrindo o Encanto e a Paixão pelos Times Locais
O futebol é parte importante da identidade brasileira, mas isso não nasce nas grandes arenas de Copa do Mundo ou nas salas dos grandes cartolas e empresários.
A raiz do esporte está no futebol interior, seja nos campos de várzea ou nos estádios municipais, seja nos clubes de bairro ou nas pequenas cidades dos sertões do país.
Mesmo sem receber a mesma atenção dos maiores clubes do país, os times do futebol local são parte fundamental da cultura futebolística em vários países, inclusive aqui no Brasil.
Esse futebol, que acontece mais próximo de seu público, trabalha tanto com o desenvolvimento de base, quanto na maior conexão entre o povo e o esporte.
O futebol interior
Quando se pensa em futebol brasileiro, a primeira coisa que nos vem à cabeça é a elite, a Série A. Mas a lista dos 20 maiores clubes do país não representa o Brasil como um todo.
Nenhum time da Região Norte chega lá desde 2005. Estados como Mato Grosso do Sul, Piauí e Espírito Santo não têm clubes na elite ou na Série B há décadas.
E além da representação estadual, a Primeira Divisão mostra pouca abertura para clubes dos interiores do Brasil.
Para além das capitais, apenas seis times jogaram a elite entre 2016 e 2023: Red Bull Bragantino, Santos, Ponte Preta, de São Paulo; Chapecoense, de Santa Catarina; e Juventude, do Rio Grande do Sul.
E o primeiro dessa lista só chegou lá após fortes investimentos de uma empresa austríaca.
Mas o futebol brasileiro não se resume à restrita lista de clubes das capitais que chegam às grandes disputas nacionais, as equipes, torneios e rivalidades regionais levam o esporte para todos os cantos do país e o aproximam das comunidades.
Assim, o futebol interior se constrói com os clubes locais, com os torneios amadores e com o futebol de várzea.
Aproximação com as raízes
Bem longe dos investimentos estrangeiros que vêm se tornando comuns com as SAFs, o futebol interior representa um costume mais tradicional, ligado às raízes do esporte.
Pelos rincões do país, o futebol ainda é sustentado pelo amor das torcidas, pelo sonho dos jogadores e pela luta de quem quer construir um time de sucesso.
O futebol amador é um retrato disso. Em torneios que envolvem os grandes bairros e as pequenas cidades, as comunidades se envolvem e as paixões se afloram, resgatando a essência e a tradição do futebol.
O mesmo acontece nas divisões inferiores e nas copas estaduais, sempre alimentadas pela garra dos jogadores, longe dos salários de seis dígitos.
E tudo isso é marcado pela identificação. O sentimento de pertencimento e proximidade atrai muita gente, de estudantes a empresários, seja para representar o seu lugar em um torneio não oficial ou para torcer e se envolver com o time da sua cidade nas divisões inferiores do calendário estadual ou nacional.
Além disso, o futebol interior ainda movimenta a economia local, empregando árbitros, membros de comissão técnica e médica, pessoal administrativo dos clubes, estádios e ligas, e claro, jogadores que não têm calendário por todo o ano.
Ainda, fornecedores e comércios de suporte nos estádios saem ganhando.
Ligas e competições regionais
Em várias cidades e regiões país afora, os torneios amadores são tradicionais.
Não há como falar da raiz do futebol sem a importância de competições como a Taça das Favelas, a Copa da Paz (SP), o Campeonato Amador (PR), a Copa Itatiaia (MG) e o Campeonato de Peladas (AM). Esses torneios movem a paixão e ajudam a revelar jogadores.
Mas também há futebol interior em torneios oficiais. Mesmo sem a importância que tinham no passado, os estaduais seguem movendo os clubes interioranos, dando experiência e projeção aos jovens jogadores e agitando as torcidas, tanto com os clubes locais, quanto levando os grandes a outras cidades.
Mas os estaduais não acontecem apenas nas primeiras divisões. As brigas pelo acesso nas segundas, terceiras e quartas podem receber algumas camisas mais pesadas, como Ponte Preta, Criciúma e Paraná já provaram recentemente.
Mas as disputas são protagonizadas pelos menores clubes, querendo crescer para representar sua cidade em níveis mais altos.
Clubes e times do interior
Mas esses torneios regionalizados são protagonizados pelos clubes que representam as cidades e os bairros.
A relação dos times com seus locais de origem são bem mais intensas no futebol local. Um exemplo é a quase centenária Juventus da Mooca. O time da Zona Leste de São Paulo segue com uma torcida apaixonada na aconchegante Rua Javari.
Também do interior de São Paulo, há camisas tradicionais como XV de Piracicaba, Inter de Limeira, Marília, Paulista de Jundiaí, Francana e XV de Jaú. Todos já moveram multidões pelos interiores e também conseguiram projeção nacional, mas não vivem seus melhores momentos e, ainda assim, seguem muito ligados às suas comunidades locais.
E vários clubes com voos maiores a nível regional e nacional também nasceram do futebol amador ou dessa ideia de representar a cidade em outro nível, gerando uma paixão intensa.
É o caso, por exemplo, do Brasil de Pelotas e da Chapecoense. Eles possuem duas das torcidas mais apaixonadas da Região Sul, toda construída na identidade regional.
E dos mais acanhados aos maiores, vários palcos interioranos se tornaram palcos memoráveis, como o Teixeirão, do América de São José do Rio Preto; o Colosso da Lagoa, do Ypiranga de Erechim; a Fonte Luminosa, da Ferroviária de Araraquara; o Kléber Andrade, principal palco do futebol capixaba; e o Coaracy da Mata, do ASA de Arapiraca.
Rivalidades e derbies regionais
Com os clubes tradicionais, o futebol interior também é marcado por grandes rivalidades. A Região Nordeste é palco de alguns desses confrontos.
É o caso de Treze x Campinense (Campina Grande-PB), Porto x Central (Caruaru-PE), Potiguar x Baraúnas (Mossoró-RN), Guarani x Icasa (Juazeiro do Norte-CE) e de Bahia x Fluminense (Feira de Santana-BA).
Todos esses jogos carregam grandes histórias e movem suas cidades quando acontecem nos campeonatos estaduais, sempre públicos acima da média nos tradicionais palcos, respectivamente Amigão, Lacerdão, Nogueirão, Arena Romeirão e Joia da Princesa.
Mas as rivalidades não ficam apenas no Nordeste.
O maior clássico do interior do Brasil é o Derby Campineiro, entre Guarani e Ponte, mas o interior paulista também reserva outros confrontos, como em Ribeirão Preto (Botafogo x Comercial), Rio Claro (Rio Claro x Velo Clube) e Sorocaba (Atlético x São Bento).
Além dessas disputas consolidadas, o futebol interior também molda identidade em diversas cidades. É difícil lembrar de Pelotas sem falar das rivalidade entre Brasil e Pelotas.
Assim como não se fala de Marabá-PA, Lucas do Rio Verde-MT, Salgueiro-PE e do bairro de Madureira, no Rio, sem lembrar do Águia, do Luverdense, do Salgueiro e do Madureira.
Desenvolvimento de talentos
As disputas locais do futebol brasileiro também são marcadas por um papel importante na revelação de jogadores.
Como os clubes de maior projeção estão concentrados nas capitais, grande parte dos jovens que sonham em jogar futebol têm poucas chances para chegar às categorias de base de um gigante da capital, precisando trilhar outros caminhos.
No futebol feminino, inclusive, essa situação é ainda mais delicada. Mas a existência de clubes interioranos, de bairro e de torneios amadores pode abrir as portas e, também, estender os sonhos para além de um primeiro não na base de um clube da Série A.
E há vários exemplos de destaque seguindo essa trilha alternativa.
Destaque e multicampeão com a camisa do Flamengo, o atacante Bruno Henrique jogou pelo Inconfidência, clube amador de Belo Horizonte e foi campeão da Taça Itatiaia representando o seu bairro, Concórdia.
Assim, ele chamou a atenção do Cruzeiro, que já tinha sido reprovado na base de vários clubes, mas assinou com a Raposa aos 21 anos.
A Taça das Favelas também abriu as portas do futebol para vários jovens, como a atacante Karol Mineira, que passou por clubes paulistas e pelo América-MG e está no futebol português.
O nome mais famoso, porém, é Patrick de Paula, revelado pelo Palmeiras após se destacar no torneio. Hoje, o volante defende o Botafogo.
Desafios
Mas nem tudo é festa no futebol interior. Com uma dependência cada vez maior do dinheiro no esporte e com a promessa de investimentos pesados nos grandes clubes após as chegadas das SAFs, fazer futebol local virou ato de resistência.
Para os clubes amadores, a disputa por atenção é cada vez mais dura em um cenário de maior desenvolvimento no futebol nacional.
Enquanto os clubes do interior e de bairro enfrentam maiores dificuldades para alcançar os maiores patamares nacionais e ainda se veem com calendário espremido em poucos meses.
Hoje, os times fora da Série D só têm o estadual, que dura cerca de três meses, e as copas estaduais, que nem existem em todos os estados. A criação de ligas no futebol nacional também ameaça os certames locais.
Não ter calendário nacional é uma experiência vivida até por grandes camisas, como Paraná, Portuguesa, São Caetano, Bragantino e Joinville.
Valorização e apoio ao futebol interior
Assim, a força do futebol interior é importante não só para a paixão pelo futebol nos rincões do país, mas para toda a nossa cultura futebolística.
E a manutenção da força desses times e torneios do futebol local é um trabalho a ser valorizado e abraçado. E há exemplos de sucesso nesse processo, com torcida e empresas se engajando em clubes e competições.
O envolvimento do poder público e de entidades do terceiro setor também é importante para esse desenvolvimento esportivo.
Boa parte dos grandes torneios amadores da atualidade contam com essa parceria, como é o caso da Taça das Favelas, criada pela Central Única das Favelas (Cufa) no Rio de Janeiro e expandida pela ONG para diversos estados.